Jamile
a baleia que engolia mundos
Lá pro lado do norte, onde a esquina do mundo tem cor de céu estrelado, existe uma tribo que já foi Mundo. Não é coisa do hoje, nem coisa do dia, é coisa de gente madura que já viu de tudo, e mesmo já tendo visto de tudo, ainda tem tempo pra ver mais coisa. Até esquecer. Ai quando esquece vira saudade. Saudade do mundo que já foram um dia.
Saudade da terra que eles pisavam, saudade das folhas que eles folheavam, saudade dos rios que eles riam e do ar que eles não viam; mas suspiravam. Era saudade de toda sorte, era lembrança de todo olfato. O mundo era só um hiato entre a serpente e o mato. O eco já não se perdia mais nas montanhas pois coisas estranhas as engoliu nas entranhas. Os aspectos, os riachos e os continentes, foi tudo englutido no mesmo sistema, atores dramáticos da mesma cena.
Mas nessa tribo, lá pro lado do norte, onde a curva que dobra o mundo para um segundo pra dar bom dia, tem uma trama que se irradia. Vestido de poço azul, nu como o vento, vadio de movimento, baila um oceano sem fundo chamado “Oceano sem Fundo”. E no fundo desse oceano, onde nunca ninguém chegou ou ousou chegar, mora Jamile, a Grande Baleia do Oceano sem fundo. Por onde ela navega suas gigantescas barbatanas, feitas das palhas de palmeiras que não existem mais, hesitam tocar o fundo com medo de não ter mais mundo.
Jamile não tem pulmões. No lugar deles tem nove corações de feltro, usados para lustrar as bordas das pessoas ilustres cujos aquários soam signatários das posses, das cercas e das ignorâncias. Jamile não tem arrogâncias. Não dispõe desse distintivo. Seu crivo se chama instinto e sua intuição mora na cabeça, um lugar rouco, onde na razão adormece um louco, e cuja a paciência lampeja a vitalidade.
Ela também não tem vaidade. É desprovida de qualquer vontade mas sua procura desponta entre laços entrelaçados. Braços, pés e cabeças ao seu entorno. Ritmo marcado, movimento exato, oceano agitado. Ao seu redor ela exala o medo, no interior seu maior segredo. Jamile sabe das coisas, Jamile sabe saltar. Jamile sabe o que ninguém sabe. O oceano tem fundo. Sabe que quem nada em círculos nunca completa um ciclo e que quem admira o horizonte; ou padece de vida ou precoce de morte.
Jamile tem sorte por ser baleia. Nascer baleia é entender que as coisas tem fundo. Entender que os ponteiros dos minutos dependem do ponteiro do segundo. E que as horas que passam voltam para as mesmas horas passadas depois de um círculo. Entende que quando ela rema a sua enorme cauda – também de palha – sentido pro sul ela chega no norte. Jamile entende das coisas. Ela tem o sentido horário embutido nela. E o anti-horário também. Ela tem inclusive a circunstância direcional que a faz pensar como baleia. Como eu disse, Jamile tem sorte por ser baleia. Imagina se fosse sereia. Jamile sabe que o canto que afoga o tempo mora no espelho. Jamile sabe que o oceano tem fundo. Coisa que ela teima em saber: o espelho não teima, reflete e repete.
Jamile sabe que quem se afoga pra dentro do espelho mergulha no céu. Ela sabe que as sereias são sem fundo. E que o seu canto vazio esvazia a margem e encalha a alma. Ela sabe das coisas porque ela sabe que é coisa também. E quem se entende coisa – assim – perpetua dentro de um sino. Jamile tem apenas um objetivo claro. Tocar esse fundo do oceano sem fundo e apenas entender que tocou no mundo. E é ai que ela se enche de orgulho, aponta pra fora da névoa, mira algum outro planeta, cometa ou constelação de plantão e dispara.
Rema com toda força, salta com toda altura. Rompe uma atmosfera parda de uma raça imatura cuja atual salvaguarda espreita, luta e labuta. Jamile também já foi puta. Comprou colar, passou batom, pensou em casar. Jamile também já foi do lar. Mas agora ela salta atravessando o véu que separa a culpa do réu. A primeira vez que a tribo do norte, da beira do mundo que já foi planeta, viu o cometa passar, ousaram pensar no fim. Mas essa palavra não existia. Então enquanto assistiam Jamile atravessar a porta que dá pro outro lado, continuaram sentados. Era apenas um mar sem fundo, uma baleia e um céu. Jamile não queria ir pro céu.
Jamile faz uma curva desconcertante, dobra o seu gigantesco corpo de palha e entalha as suas barbatanas nuas nessa prancha de sal a qual se chamava lar. Seu peso colossal explode de costas ao mar, causando nausea, calafrio, mau estar. Cidades são inundadas, países naufragam e o mundo transborda. Jamile atravessa o oceano sem fundo, nadando no céu, levando a sua água, o seu ar. Jamile agora é o céu.
Nada em uma estrada de água doce, salgada, misturada de planta e de bicho, rumo a um pedaço de rocha, que flutua no escuro infinito chamado universo. A massa d’água envolve o planeta, apaga o cometa e se encaixa. As árvores caem e se enterram enquanto os bichos se escorrem e se esguiam pelas suas encostas fazendo a prece virar outra dança. As formigas trabalham, as mariposas bailam que nem criança. Como eu já disse, Jamile não tem pulmões, no lugar deles são nove corações de feltro a lustrar o novo mundo tal qual a forma e a pose que o seu instinto o deu. Jamile comeu a tribo. Carrega consigo o futuro. Deposita na praia a esperança da vida sem muro, sem não, sem razão outra que não a própria vida.
Jamile esta exausta mas esta satisfeita. Refazer mundos é a sua especialidade e pra isso ela não tem vaidade, entende como qualidade inata e é grata. Mas teme chegar de novo ao fundo do oceano sem fundo. Gostaria que fosse a última vez mas Jamile não controla a insensatez. Ri sozinha quando pensa que a isso se deu o nome de racionalidade. E que a ela que simplesmente vive, nomearam isso sobrevivência. Jamile sabe o que eu sinto. Essas palavras jogadas, calcadas nesse rogar, foi Jamile quem me deu. E é nesse pedaço de branco sem fundo que eu sou Jamile.
E Jamile sou eu.
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